Sucessão de acontecimentos que levaram à encruzilhada argentina atual é vertiginosa. Por isso, talvez valha a pena reconstruir um conjunto de fatos recentes que poderiam ajudar-nos a entender como o país vizinho chegou ao momento atual. A cena primordial de fundação do quarto kirchnerismo se desenvolve a partir de uma inversão de papéis.
Em 18 de maio de 2019, meses antes do término do governo de Maurício Macri, Cristina Kirchner publica uma mensagem na rede social Twitter em que, a um só tempo, se apresenta como candidata à vice-presidência e alça Alberto Fernández à cabeça da chapa presidencial que disputaria o pleito em outubro daquele ano.
A decisão da líder da oposição visava a um objetivo estritamente eleitoral, mas acarretaria consequências catastróficas em termos de governabilidade. Eleitoralmente, a incorporação de Fernández, crítico ácido do kirchnerismo após o conflito do Kirchnerismo contra o setor agroexportador em 2008, enviava uma mensagem de moderação aos setores menos polarizados da sociedade argentina, ampliando a base de votos na Frente de Todos.
No entanto, por razões que permanecem pouco claras, Cristina cedia sua densidade política à chapa liderada pelo antigo rival sem qualquer contrapartida ministerial de peso, o que tornava a crise de governabilidade uma questão de tempo.
Ascensão e queda de um “estadista”
A euforia pelo triunfo eleitoral de 2019 durou pouco. Depois de poucos meses de começar, o governo de Fernández teve que lidar com a pandemia. Em um intervalo de um ano, o presidente passou do céu ao inferno. Depois de angariar inusitados 90% de imagem positiva em março de 2020 por sua condução inicial da pandemia, e ser reconhecido como um verdadeiro “estadista” por setores da oposição por sua pronta resposta à calamidade sanitária, uma sucessão de fatos fará com que o escolhido de Cristina passasse de protagonista a simples coadjuvante no tabuleiro político.
Com o passar dos meses, Fernández foi responsabilizado pelo atraso e excessiva rigidez das medidas de isolamento social, terminou exposto por denúncias de fornecimento arbitrário de vacinas a figuras próximas ao poder e, ainda, viu sua reputação corroída pela realização de uma festa na residência presidencial no auge das medidas de restrição à circulação.
Enquanto isso, a peste havia feito o seu trabalho. Apenas alguns semestres depois de voltar ao governo com a promessa de devolver a esperança aos argentinos, diante de uma conjuntura hostil, Fernández não pôde entregar mais que inflação e crescimento da pobreza, deteriorando praticamente todos os indicadores socioeconômicos legados pelo governo anterior.
2021, o aviso de incêndio
“Sobre llovido, mojado”, diz um dito argentino. Cerca de dois anos do regresso ao centro da cena política, o peronismo faz umas de suas piores eleições legislativas desde a transição democrática, em 1983. La Libertad Avança (LLA), agrupação de ultradireita fundada no mesmo ano, se impõe como uma amarga novidade – foi de suas fileiras que dois anos mais tarde sairá a chapa presidencial que disputará com Sergio Massa o posto mais alto do poder executivo nacional.
Dois dados sobressaíram daquela jornada. Por um lado, a proposta ultraconservadora passa a disputar tanto a base eleitoral quanto a agenda da direita tradicional, representados até então majoritariamente pela coalizão formada pela Proposta Republicana (PRO), pela União Cívica Radical (UCR) e pela Coalizão Cívica (CC-ARI). Por outro, Javier Milei, candidato de Liberdade Avança a deputado federal pela Cidade de Buenos Aires, cresce de forma excepcional em comunas pobres da capital.
O pleito reconfigurou não apenas o Congresso Nacional, fortalecendo a bancada de direita. O revés implodiu o engendro eleitoral gestado em 2019 por Cristina, e o quarto kirchnerismo não voltou a encontrar seu prumo: ele tropeçou de obstáculo em obstáculo, lutando aos trancos e barrancos contra inimigos internos e externos para conseguir terminar seu quadriênio de governo.
Criadora e criatura enfrentados
Em resposta ao revés nas urnas de 2021, Cristina ainda tentou reabilitar o experimento à força, buscando diferenciar-se de seus frutos. Em um primeiro momento, ela ordenou a renúncia de suas principais peças dentro do poder executivo, colocando a gestão à margem da dissolução. Em seguida, buscou sem trégua a destituição de Martin Guzmán, ministro de economia escolhido por Fernández para levar a cabo a negociação da dívida de 57 bilhões de dólares junto ao Fundo Monetário Internacional (FMI), em 2018, pelo governo de Mauricio Macri.
Desgastado por uma controvertida estratégia de negociação, Guzmán entregará sua renúncia em 3 de julho de 2022, enfraquecendo ainda mais um governo já débil. Na prática, com a abdicação do discípulo de Joseph Stiglitz, declinava também Fernández a qualquer pretensão remanescente de condução do quarto kirchnerismo.
A pouca resistência oferecida ao pedido de renúncia do ministro de economia, que protestou reiteradas vezes contra a falta de respaldo de seu superior, selaria o término precoce do governo de Fernández, um ex-chefe de gabinete de Néstor Kirchner, pavimentando o caminho para a candidatura de Sergio Massa à presidência.
Massa, figura política ambígua, que soube transitar com desenvoltura da centro-direitista União do Centro Democrático (UCD) à Frente Renovadora, passando pelo peronismo, assumirá a difícil tarefa de reconstruir a confiança dos eleitores no espaço político fundado por Juan Domingo Perón.
A revanche da juventude precarizada
O escrutínio definitivo das eleições primárias de agosto deste ano consolidou o que na eleição legislativa de 2021 havia aparecido apenas como uma tendência cifrada: A Liberdade Avança se consolidou como depositária do voto ultraconservador e a direita tradicional passou à retaguarda.
Em que consiste a parcela majoritária da base eleitoral dessa neófita força política? Trata-se de uma juventude precarizada que já não encontra resposta para seus problemas mais cotidianos no que entende ser a “casta política”. São esquivos às pesquisas de opinião, daí a surpresa por sua aparição repentina na arena eleitoral, mas quando se expressam sobre as razões de seu voto protestam contra a impossibilidade de visualizar qualquer tipo de futuro estável e mais promissor do que o presente.
Para esses jovens eleitores, as expectativas decresceram e a mobilidade ascendente tornou-se um mito rarefeito. Quando estão empregados, a formalidade é a exceção à regra de uma exasperante rotatividade laboral. Muitos deles vivem em territórios inseguros, ameaçados pelo narcotráfico e assumem conviver com a sensação de que trabalham para ser pobres – uma novidade estatística da Argentina dos últimos anos.
Essa juventude vê em Javier Milei a rebeldia que há 20 anos atrás o kirchnerismo reivindicava como seu grande capital político. Afinal, foi sobre os escombros da crise de 2001 e da palavra de ordem “que se vayan todos” que surgiu a força política liderada por Néstor e, posteriormente, por Cristina Kirchner. Nesse sentido, não deixa de ser curioso que se escute o mesmo cântico indignado nos atos de Liberdade Avança; agora pede-se “que se vayan todos”, menos Milei…
A vitória de Pirro de Sergio Massa
Apesar da derrota do dia 19 de novembro, atribuiu-se a Sergio Massa a façanha de haver operado um milagre no primeiro turno. Se ouviu dizer que o líder da Frente Renovadora figuraria nos registros históricos como o ministro de uma economia às portas de uma hiperinflação, 140% de inflação núcleo, com 45% de pobres – 60% entre as crianças – e, ainda assim, havendo chegado ao segundo turno com chances de ganhar a corrida presidencial.
No entanto, um olhar em perspectiva sobre o resultado do primeiro turno já identificava dificuldades que se mostraram não superáveis no segundo turno. Embora Massa tivesse superado a chapa Milei/Villarruel por cerca de 7%, seus 37% estiveram muito longe do desempenho histórico do peronismo unido em contendas eleitorais a nível nacional. Pensemos, por exemplo, nos 54% de Cristina nas eleições de 2011 para termos uma ideia de seu modesto feito. Se cotejarmos este dado com a soma das duas principais ofertas eleitorais à direita, observaríamos que Massa se havia lançado em uma missão quixotesca.
Gastando perto de 2% do PIB em sua campanha, movendo a máquina peronista a todo vapor e promovendo uma estratégia internacionalizada de marketing de causar inveja a qualquer aspirante ao poder, Massa teve que reconhecer, avançada a noite do dia 19, que o triunfo do primeiro turno não havia passado de uma vitória de pirro.
E agora, o quê?
Nem mesmo os militantes mais otimistas da Liberdade Avança poderiam sonhar com tamanha vantagem de Javier Milei sobre o aspirante do Unidos pela Pátria. Contadas quase a totalidade das urnas, Milei somou 56% dos votos contra 44% do atual ministro de economia. O candidato da LLA obteve êxito em 21 das 24 províncias argentinas, mas a magnitude de uma delas deve ser destacada: o imprevisível desfecho na Província de Buenos Aires.
Mal comparando, é como se disséssemos que Bolsonaro, em uma eleição hipotética contra Lula, tivesse quase igualado em votos no Nordeste. Milei conseguiu isso. Desafiando todos os prognósticos, o candidato anarcocapitalista esteve a 1,5% de empatar com Sérgio Massa em seu próprio bastião. Representando 37% do total eleitoral nacional, o resultado na que é conhecida como a “mãe de todas as batalhas”, junto com outras províncias importantes como Córdoba e Santa Fé, ajudou a torcer o destino da eleição a favor do candidato de ultradireita.
A vitória de LLA abre muitas perguntas. Quando começará a dolarização prometida na campanha? Como lidará Milei com um congresso dividido agora em três forças e não em duas como foi praxe nos últimos anos na Argentina? Cumprirá suas promessas de “desideologização” das relações exteriores ou terá de adotar um estilo mais pragmático com seus principais parceiros comerciais, China e Brasil?
Seja como for, as últimas eleições presidenciais na região têm evidenciado uma tendência clara. O tempo de “lua de mel” entre o eleitorado e seus escolhidos têm se mostrado cada vez mais curto. Teremos que esperar os próximos capítulos dessa tenebrosa saga para ver como convivem, na prática, o mandato de mudança radical expressado pelo voto dos argentinos e argentinas em Javier Milei e Victoria Villarruel e a conhecida tradição de mobilização política do país vizinho.
Sobre os autores
Igor Peres
é sociólogo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro
é sociólogo pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro